“Despertem o mundo”. Íntegra do diálogo do Papa Francisco sobre a vida religiosa

No dia 29 de novembro de 2013, o Papa Francisco teve um encontro de três horas, no Vaticano, com 120 superiores religiosos de todo mundo. O diálogo do Papa foi reproduzido por Antonio Spadaro, jesuíta, e publicado pela revista La Civiltà Cattolica, 03-01-2014, nas versões italina, inglesa e espanhola.

Eis o texto.

Quando o Papa Francisco fala de improviso e dialoga, seu discurso tem um ritmo que ondula progressivamente; deve-se estar atento para compreendê-lo com cuidado, porque ele se nutre da relação viva com seus interlocutores. Aqueles que o escutam falar devem prestar cuidadosa atenção não só no conteúdo do que diz como também na dinâmica da relação estabelecida. É isso o que aconteceu durante o diálogo do Santo Padre com a União dos Superiores Gerais no final de sua 82a Assembleia Geral.  Sentado entre eles, tomei notas do diálogo. Tanto quanto possível, aqui tentarei expressar a riqueza dos conteúdos, mantendo o tom vívido e espontâneo do encontro, que durou três horas. Por volta da metade do encontro, por aproximadamente meia hora, o pontífice andou entre os participantes para cumprimentar pessoalmente os Superiores Gerais, tomando um mate num clima tranquilo e informal.

Na verdade, os Superiores haviam pedido apenas um breve encontro para saudar o papa, porém este quis passar a manhã toda junto em diálogo. No entanto, decidiu não fazer uma discurso nem ouvir os discursos preparados: desejou ter um diálogo franco e livre consistindo de perguntas e respostas.

São 09h25min e a chegada dos fotógrafos anuncia a entrada iminente do Papa Francisco na sala nova do Sínodo, no Vaticano, onde aproximadamente 120 Superiores o aguardavam.

Religiosos: pecadores e profetas

Recebido com aplausos, o Santo Padre toma acento às 09h30min exatamente, olha para o relógio e congratula-se por sua “pontualidade suíça”. Todos dão risadas: o papa saudou o Pe. Mauro Jöhre, já que ele é suíço e o Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, tendo recentemente sido eleito vice-presidente da União dos Superiores Gerais.

Após algumas breves palavras de cumprimento do presidente, o Pe. Adolfo Nicolás (Superior Geral dos Jesuítas), e do secretário geral, Pe. David Glenday, comboniano, o Papa Francisco, de forma muito simples, agradeceu cordialmente a Assembleia pelo convite e ouviu, em seguida, a primeira rodada de perguntas. Os religiosos lhe perguntaram especialmente a respeito da identidade e da missão dos religiosos: “O que espera da vida consagrada?” O que pede de nós? Se estivesse em nosso lugar, o que faria para responder ao chamado de ir às periferias, de viver o Evangelho sine glossa, a profecia evangélica? O que se sentiria chamado a fazer?” E mais: “O que se deveria enfatizar hoje? Quais são as prioridades?”

O Papa Francisco começou dizendo que ele é um religioso também e que, portanto, sabe da experiência sobre a qual estavam falando. O último papa que pertenceu a uma ordem religiosa foi o camaldulense Papa Gregório XVI, eleito em 1831. Ele então fez referência explícita a Bento XVI: “Disse que a Igreja cresce através do testemunho, não do proselitismo. O testemunho que pode, realmente, atrair é aquele associado a atitudes não habituais: generosidade, desapego, sacrifício, esquecimento de si próprio no intuito de ajudar os outros. Eis o testemunho, o ‘martírio’, da vida religiosa. Para as pessoas isso ‘soa como um alerta’. Os religiosos falam às pessoas com sua vida: ‘O que está acontecendo?’ Estas pessoas estão me dizendo alguma coisa! Elas vão além de um horizonte mundano. ‘Portanto – continuou o papa citando Bento XVI – a vida religiosa deve promover um crescimento na Igreja via atração.”

Dessa forma, a “Igreja deve ser atraente. Despertem o mundo! Sejam testemunhos de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver! É possível viver neste mundo de forma diferente. Estamos falando de uma perspectiva escatológica, dos valores do Reino aqui encarnados sobre esta terra. Trata-se de deixar todas as coisas para seguir ao Senhor. Não, não quero dizer ‘radical’. A radicalidade evangélica não é apenas para os religiosos: ela é exigida de todos. Porém, os religiosos seguem ao Senhor de forma especial, seguem-no profeticamente. É este testemunho que espero de vocês. Os religiosos e as religiosas deveriam ser pessoas capazes de despertar o mundo”.

Papa Francisco reitera conceitos que já houvera citado, explorando-os mais aprofundadamente. Com efeito, continuou: “Deverão ser testemunhas reais de um modo diferente de ser e agir. Mas, na vida, é difícil as coisas sempre serem claras; elas precisas bem delineadas. A vida é complicada, consistindo de graça e pecado. Aquele que não peca não é humano. Todos cometemos erros e precisamos reconhecer nossas fraquezas. Um religioso que se reconhece como fraco e pecador não nega o testemunho ao qual é chamado a dar; pelo contrário, ele a reforça, e isso é bom para todos. O que espero de vocês é, pois, dar testemunho. Quero este testemunho especial por parte dos religiosos”.

Evitar o fundamentalismo e iluminar o futuro

Prosseguindo com sua resposta às primeiras perguntas, o Papa Francisco tocou num dos pontos centrais de seu pensamento: “Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças na história ocorreram quando a realidade não era vista a partir do centro, mas sim da periferia. Trata-se de uma questão hermenêutica: entende-se a realidade apenas se ela for olhada da periferia, e não quando nosso ponto de vista está equidistante de tudo. Para verdadeiramente entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas”.

Portanto, “não é uma estratégia boa estar no centro de uma esfera. Para entender, precisamos nos mover ao redor, e assim poder ver a realidade de vários pontos de vista. Temos que nos acostumar a pensar. Frequentemente faço referência a uma carta do Padre Pedro Arrupe, que foi o Superior Geral da Companhia de Jesus. Trata-se de uma carta enviada aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS). Nela o Padre Arrupe falava da pobreza e dizia que algumas horas de contato com os pobres são necessárias. E isto é muito importante para mim: é necessário conhecer a realidade via experiência, passar certo tempo caminhando pela periferia buscando se familiarizar com ela e com as experiências de vida das pessoas. Se acaso isso não ocorrer, então corremos o risco de sermos ideólogos abstratos ou fundamentalistas, o que não é saudável”.

Em seguida, o papa se deteve sobre uma questão concreta, a do apostolado dos jovens. “Aqueles que trabalham com os jovens não podem se contentar em dizer simplesmente coisas engessadas e estruturadas, como num tratado; estas coisas entram por um ouvido e saem pelo outro. Precisamos de uma nova linguagem, de uma nova maneira de dizer as coisas. Hoje Deus nos pede isto: deixar o ninho em que nos encerramos para sermos enviados. Aquele que vive sua consagração em clausura vivencia essa tensão interior em oração, de forma que o Evangelho possa crescer. O cumprimento do mandamento evangélico “ide por todo mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16:15) pode se realizar com esta chave hermenêutica traduzida para as periferias existenciais e geográficas. É a forma mais concreta de se imitar a Jesus, que costumava ir a todas as regiões periféricas. Jesus foi a todas elas, visitou cada uma delas. Eu não me sentiria desconfortável indo para a periferia: não tenham medo de se dirigir a quem quer seja”.

Então, qual é a prioridade da vida consagrada? O papa responde: “A profecia do Reino, que não é negociável. A ênfase deverá cair sobre os profetas, e não em brincar de sê-los. Naturalmente, o demônio nos apresenta suas tentações, e uma delas é: apenas parecer sermos profetas. Porém, não se pode jogar com estas coisas. Eu mesmo tenho visto coisas tristes a esse respeito. Não, os religiosos e as religiosas são homens e mulheres que iluminam o futuro”.

Em sua entrevista à Civiltà Cattolica, o Papa Francisco afirmou claramente que os religiosos são chamados a uma vida profética. Eis o que lhes é particular: “ser profetas, particularmente, ao demonstrar como Jesus viveu na terra, e proclamar como o Reino de Deus será em sua perfeição. Um religioso jamais deverá renunciar a sua profecia. […] Pensemos sobre o que fizeram muitos dos grandes santos, monges, religiosos e religiosas, de Santo Antônio Abade em diante. Às vezes, ser profeta envolve fazer “ruído”, não sei exatamente como dizer. Profecia faz ruído, “barulho”, algumas dizem: faz “bagunça”. Mas, na realidade, o carisma dos religiosos é como o fermento: a profecia anuncia o espírito do Evangelho”.

Então, como sermos profetas vivendo o próprio carisma religioso particular? Para o Papa Francisco, precisamos “reforçar o que é institucional na vida consagrada, e não confundir o Instituto com a obra apostólica. O primeiro permanece; a segundo passa”. E continua: “O carisma continua, é forte; a obra passa. Às vezes se confundem o Instituto e a obra. O Instituto é criativo, busca sempre novos caminhos. Nesse sentido, as periferias mudam também, podendo ser feita uma lista sempre diferente”.

“O carisma não é uma garrafa de água destilada”

Neste momento as perguntas se centraram em temas vocacionais. Estamos testemunhando uma mudança profunda na geografia humana da Igreja, e o mesmo ocorre com os institutos religiosos. Na África e na Ásia as vocações crescem em número, que juntas contabilizam a maior parte da soma total. Tudo isso estabelece uma série de desafios: inculturação do carisma, discernimento vocacional e seleção de candidatos, o desafio do diálogo inter-religioso, a busca por uma representação mais igualitária nas organizações governamentais dos Institutos e, de modo mais geral, na estrutura da Igreja. Então, pediu-se ao papa que oferecesse orientações no que diz respeito a esta situação.

O pontífice afirmou estar bem ciente das mudanças geográficas existentes na vida consagrada e que “todas as culturas são capazes de ouvir o chamado do Senhor, e que ele é livre para suscitar mais vocações em uma parte do mundo do que em outras. O que o Senhor quer dizer ao nos enviar vocações provindas das igrejas mais jovens? Não sei. Mas me faço essa pergunta. Temos que fazê-la. O desejo do Senhor se encontra, de alguma forma, aí. Há igrejas que estão dando frutos novos. Talvez, em algum momento elas não eram tão férteis, mas agora estão sendo. É claro, necessitamos repensar a inculturação do carisma. O carisma é único, porém ele precisa – como costumava dizer Santo Inácio – ser vivido de acordo com cada lugar, tempo e indivíduo. O carisma não é uma garrafa de água destilada. Ele precisa ser vivido energicamente assim como precisa ser interpretado culturalmente. Mas, nesse sentido, há o perigo de cometer equívocos; uns dirão, o perigo de cometermos erros. É arriscado, certamente. Certamente iremos cometer enganos, não há dúvida. Mas isso não deverá ser motivo para nos fazer parar, porque há a chance de cometermos enganos maiores. Na verdade, deveríamos sempre pedir por perdão e olhar envergonhados para as falhas apostólicas devido à falta de coragem. Por exemplo, pensemos nas intuições pioneiras de Matteo Ricci.

“Não estou me referindo às adaptações folclóricas dos hábitos, dos costumes”, continuou o papa. “Trata-se de uma questão de mentalidade, de modo de pensar. Por exemplo, há povos que pensam de forma mais concreta do que abstrata, ou ao menos numa forma diferente de abstração em relação àquela forma ocidental. Eu próprio vivi esta experiência quando era o provincial jesuíta na Argentina. Lembro dos muitos esforços que um Irmão jesuíta e eu expendíamos quando conversávamos mesmo sobre coisas simples do dia a dia; ele era de uma região onde o povo Guarani vivia, um povo que desenvolveu uma forma de pensamento muito concreta. Precisamos viver com coragem e nos confrontar com estes desafios também sobre temas importantes. Afinal, não posso formar alguém como uma pessoa consagrada sem considerar sua vida, suas experiências, mentalidade e contexto cultural. Este é o caminho. É isso o que os grandes missionários fizeram. Lembro agora as aventuras extraordinárias do jesuíta espanhol Segundo Llorente, um missionário tenaz e contemplativo no Alaska. Ele não apenas aprendeu o idioma como também a forma concreta de pensar daquele povo. Portanto, inculturar o carisma é fundamental, e isso não quer dizer, de forma alguma, relativizá-la. Não podemos fazer do carisma algo rígido ou uniforme. Quando fazemos nossas culturas uniformes, matamos nosso carisma”, concluiu decisivamente o pontífice, indicando a necessidade de “introduzir pessoas de várias culturas para dentro da governança das Ordens e Congregações, pessoas que expressem os diversos modos de viver o carisma”.

Certamente o Papa Francisco está ciente dos riscos, mesmo em termos de “recrutamento vocacional”, feito pelas novas igrejas. Entre outras coisas, ele recordou que, em 1994, no contexto do Sínodo da Vida Consagrada e de sua Missão, bispos filipinos criticaram o “tráfico de noviços”, ou seja, a chegada massiva de congregações estrangeiras que inauguravam casas de formação no arquipélago com um olho visando o recrutamento de vocações para serem levadas à Europa. “Precisamos ficar de olhos abertos para situações como essa”, disse o papa.

Ele também dispensou tempo para falar sobre os irmãos e, de forma mais geral, sobre os religiosos que não são sacerdotes. Lamentou que uma consciência adequada desta vocação específica não foi ainda desenvolvida. Referiu-se ao documento relacionado a este assunto o qual nunca apareceu e que, talvez, poderia ser retomado. Este poderia ser finalizado e, assim, facilitar as coisas para uma reflexão mais satisfatória. Nesse momento, o papa olhou para o cardeal João Braz de Aviz, prefeito da Congregação dos Institutos da Vida Consagrada, e para o Dom José Rodríguez Carballo, que estavam presentes na Assembleia, convidando-os a considerarem a questão. Ele então concluiu: “Realmente não acredito que a crise vocacional entre os religiosos que não são sacerdotes seja um sinal dos tempos, dizendo a nós que esta vocação chegou ao fim. Em lugar disso, deveríamos compreender o que Deus está nos pedindo”. Ao responder a uma pergunta relacionada a irmãos consagrados como superiores em ordens clericais, o papa disse que este é um assunto canônico e que precisa ser pensado neste nível de discussão.

A formação é uma obra de arte, não uma ação policialesca

Logo a seguir, o Papa Francisco escuta algumas poucas perguntas sobre formação. Imediatamente ele responde, indicando suas prioridades: “A formação de candidatos é fundamental. Há quatro pilares da formação: o espiritual, o intelectual, o comunitário e o apostólico. O fantasma que se deve combater é a imagem da vida religiosa entendida como um refúgio e consolo face a um mundo ‘externo’, difícil e complexo. Estes quatro pilares precisam estar integrados já desde o primeiro dia em que entram para o noviciado, e não devem ser estruturados de modo sequencial. Precisam ser interativos”.

O papa está ciente do fato de que o problema da formação, hoje, não é algo fácil de se lidar: “A cultura de hoje é muito mais rica e conflitiva do que aquela que vivemos em nossos dias, décadas atrás. Nossa cultura era mais simples e ordenada. Atualmente, a enculturação clama por uma atitude diferente. Por exemplo, não se resolvem os problemas simplesmente proibindo de se fazer isso ou aquilo. É necessário muito diálogo, muita confrontação. Para evitar problemas, em algumas casas de formação os jovens ficam calados, tentam não cometer erros evidentes, seguem as regras sorrindo, apenas esperando pelo dia em que lhes dirão: ‘Bom, terminaste a formação.’ Isso é a hipocrisia, fruto do clericalismo, que é um dos males mais terríveis. Já disse isto aos bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) este ano [2013] no Rio de Janeiro: precisamos vencer esta propensão ao clericalismo em nossas casas de formação e em nossos seminários também. Resumo tudo isso com um conselho que certa vez recebi quando era jovem: ‘Se queres ir adiante, pense claramente e fale obscuramente.’ Era um convite claro à hipocrisia. Precisamos evitar isso a todo custo”. Com efeito, no Rio de Janeiro o papa identificou o clericalismo como uma das causas da “falta de maturidade e liberdade cristã” no Povo de Deus.

Disso, segue-se que “se o seminário for muito grande, precisa-se separá-lo em comunidades menores com formadores que estejam capacitados a acompanhar, verdadeiramente, aqueles de sua responsabilidade. O diálogo deve ser sério, sem medo, sincero. É importante lembrar que a linguagem dos jovens em formação, hoje, é diferente daquela do passado: estamos vivendo uma mudança epocal. A formação é uma obra de arte, não uma ação policialesca. Devemos formar o coração dos jovens. Do contrário, formaremos pequenos monstros. E então estes pequenos monstros formarão o Povo de Deus. Isso me dá arrepios”.

Então, o papa insistiu no fato de que a formação não deveria se orientar somente em direção ao crescimento pessoal, mas também na busca de seu objetivo último: o Povo de Deus. É importante pensar sobre o povo para o qual estas pessoas serão enviadas durante sua formação: “Precisamos sempre pensar nos fiéis, no Povo fiel de Deus. É necessário formar pessoas que sejam testemunhos da ressureição de Jesus. O formador tem que pensar que a pessoa em formação será chamada a cuidar do Povo de Deus. É necessário sempre pensar no Povo de Deus durante todo este processo. Pensemos nos religiosos que têm o coração tão ácido quanto o vinagre: eles não foram feitos para o povo. No final, não devemos formar administradores, gerentes, mas pais, irmãos, companheiros de viagem”.

Por fim, o Papa Francisco quis destacar um risco maior: “Aceitar um jovem no seminário que tenha sido pedido a deixar o instituto religioso por causa de problemas com a formação e por razões sérias é um enorme problema. Não falo das pessoas que se reconhecem como pecadoras: todos somos pecadores, porém nem todos somos corruptos. Pecadores são aceitos, mas não pessoas corruptas”. Aqui o papa fez lembrar a importante decisão do Papa Bento XVI ao lidar com casos de abuso: “isso deveria servir como uma lição para nós a fim de termos coragem de abordar a formação pessoal como um desafio sério, sempre tendo em mente o Povo de Deus”.

Vivendo a fraternidade “amenizando os conflitos”

Sínodo da Nova Evangelização pediu que os religiosos sejam testemunhas da força humanizadora do Evangelho por meio da vida em fraternidade. Tomando como inspiração esta intervenção, fizeram-se ao Papa Francisco algumas perguntas a forma que os religiosos deveriam viver como irmãos: “Como mantermos juntos os compromissos da missão com aqueles da vida comunitária? Como podemos combater a tendência do individualismo? Como deveríamos agir em relação ao um irmão em dificuldade ou que vive ou cria conflitos? Como podemos conjugar justiça e misericórdia em casos difíceis?”.

Aqui o papa lembrou-se que, no dia anterior, havia se encontrado com o superior da Comunidade de Taizé, o Irmão Alois: “na Comunidade de Taizé existem católicos, calvinistas, luteranos, etc. Todos vivem realmente uma vida de fraternidade. Por outro lado, as enfermidades da fraternidade possuem forças que as destroem. A tentação contra a fraternidade é o que mais impede o caminho para a vida consagrada. São João Berchmans  costumava dizer que sua maior penitência era precisamente a vida comunitária. Às vezes, viver em fraternidade é difícil, mas se não for vivida não será produtiva. A obra, também a ‘apostólica’, pode-se tornar uma fuga da vida fraterna. Se alguém não consegue viver em fraternidade, não poderá viver uma vida religiosa”.

“A fraternidade religiosa – continuou –, com toda a sua diversidade possível, é uma experiência de amor que vai além dos conflitos. Conflitos comunitários são inevitáveis: de certo modo, eles precisam ocorrer, caso a comunidade esteja verdadeiramente vivendo relações sinceras e honestas. É a vida. Não faz sentido pensar em uma comunidade na qual haja irmãos que não vivenciam dificuldades em suas vidas. Algo está faltando em comunidades onde não existam conflitos. A realidade dita que existam conflitos em todas as famílias e grupos humanos. E os conflitos precisam ser encarados de cabeça em pé: não deveriam ser ignorados. Encobri-los só cria uma panela de pressão que irá, por fim, explodir. Uma vida sem conflitos não é vida”.

O valor em jogo é alto. Sabemos que um dos princípios fundamentais do Papa Francisco é que a “unidade prevalece sobre o conflito”. Suas palavras dirigidas aos religiosos devem ser lidas à luz da exortação apostólica Evangelii Gaudium (§§ 226-230), onde se pede para “aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de um novo processo” (§ 227). Faz-se importante recordar que, para Bergoglio, a realização pessoal jamais é um empreendimento exclusivamente individual, e sim coletivo, comunitário.  Nesse sentido, o conflito pode – e mesmo deve – envolver um processo de maturação.

Em todo caso, conflitos devem ser abordados com aconselhamento espiritual: “Jamais deveríamos agir como o sacerdote ou o levita na parábola do bom samaritano, que simplesmente passaram ao longe. Mas o que deveríamos fazer? Lembro-me – disse o papa – da história de um jovem, de 22 anos, que sofria de profunda depressão. Não estou falando de um religioso, mas de um jovem que morava com sua mãe, a qual era viúva e que lavava roupas para famílias ricas. Este jovem não mais foi trabalhar e vivia ofuscado pelo álcool. A mãe não conseguia ajudá-lo: toda manhã, antes de sair, ela simplesmente o olhava com grande ternura. Hoje este jovem é uma pessoa importante: superou o problema, porque, no final, aquele olhar de ternura de sua mãe o sacudiu. Precisamos recuperar esta ternura, incluindo a ternura materna. Pensemos na ternura que São Francisco viveu, por exemplo. A ternura ajuda a superar os conflitos. Se isso não bastar, poderá ser o caso de trocar de comunidade”.

“É verdade – o Papa Francisco continuou –, às vezes somos muito cruéis. Todos vivemos a sensação de criticar visando satisfação pessoal ou obter vantagens. Por vezes, os problemas na fraternidade devem-se a personalidades frágeis, casos nos quais a ajuda de um profissional, um psicólogo, deveria ser procurada. Não há porque ter medo disto: não se precisa temer cair, necessariamente, no psicologismo. Mas nunca, nunca deveríamos agir como administradores ante o conflito de um irmão. Temos que envolver o coração”.

“A fraternidade é algo delicado. No hino das Primeiras Vésperas de São José, no breviário argentino, pede-se ao santo para cuidar da Igreja com ternura de eucaristía, ‘ternura eucarística’.  Eis como devemos tratar nossos irmãos: com ternura eucarística. Precisamos cuidar dos conflitos. Lembro-me de quando Paulo VI recebeu a carta de uma criança com muitos desenhos. Ele disse que o fez muito bem ter recebido uma carta dessas sobre uma mesa repleta de tantas outras que só falavam de problemas. A ternura nos faz bem. A ternura eucarística não mascara os conflitos, mas ajuda-nos a enfrentá-los como homens”.

As relações mútuas entre os religiosos e as Igrejas locais

A esta altura do diálogo, os Superiores Gerais fizeram ao papa várias perguntas relativas às atividades das comunidades religiosas no contexto das Igrejas locais e sobre a relação destas comunidades com os bispos: Como podemos fomentar a comunhão entre os distintos carismas e formas de vida cristã de maneira a cultivar o crescimento de todas e um desenvolvimento melhor da missão?

O papa responde que está pendente, há muitos anos, o pedido para rever os critérios das diretrizes que foram promulgadas, em 1978, pela Congregação para os Religiosos e pela Congregação para os Bispos (Mutuae Relationes), diretrizes que são concernentes às relações entre bispos e religiosos na Igreja. O pontífice é da opinião de que esta é a hora, porque “aquele documento foi útil naquele período, mas que agora está desatualizado. Os carismas dos vários institutos precisam ser respeitados e fomentados porque são necessários nas dioceses. Conheço por experiência os problemas – continuou – que podem haver entre um bispo e as comunidades religiosas”. Por exemplo, “se os religiosos decidem um dia deixar uma de suas obras devido à falta de religiosos, o bispo logo se encontra com uma batata quente nas mãos. Eu mesmo passei por experiências difíceis como esta. Se me informavam que uma obra estava sendo abandonada, eu não sabia o que fazer. Na verdade, uma vez me contaram isso só após, quando já havia ocorrido. Inversamente, posso também falar de outros episódios muito positivos. O fato é que conheço os problemas, mas também sei que os bispos nem sempre estão por dentro dos carismas e das obras dos religiosos. Nós, bispos, precisamos entender que as pessoas consagradas não são funcionárias, e sim presentes que enriquecem as dioceses. O envolvimento das comunidades religiosas nas dioceses é importante. O diálogo entre o bispo e os religiosos tem que ser resgatado, de modo que, devido à falta de entendimento de seus carismas, os bispos não vejam os religiosos simplesmente como instrumentos úteis”. Por esta razão o papa confiou à Congregação para os Religiosos a tarefa de retomar a reflexão sobre o documento Mutuae Relationes e trabalhar em sua revisão.

As fronteiras da missão: marginalização, cultura e educação

As últimas perguntas estiveram relacionadas às fronteiras da missão das pessoas consagradas. Frequentemente, o papa fala sobre “partida, ida, fronteiras”. Então, os Superiores Gerais perguntaram o que poderiam ser estas fronteiras para as quais se poderia ir em partida: “Como vê a presença da vida consagrada nesta realidade de exclusão que vivemos? Muitos Institutos estão engajados na questão da educação. Nesse sentido, como vê este tipo de serviço? O que diria aos religiosos que se engajam neste campo?”.

Antes de tudo, o papa afirma que as fronteiras geográficas certamente ainda existem e que é necessário estarmos dispostos a nos movimentar. Mas há também fronteiras simbólicas que não são predeterminadas e que não são as mesmas para todos. Pelo contrário, “temos que buscá-las na base do carisma de cada Instituto. Portanto, precisamos fazer o discernimento segundo cada carisma em particular. Por certo, as realidades de exclusão se apresentam como as prioridades mais significativas, mas elas necessitam de discernimento. O primeiro critério é mandar as pessoas mais talentosas a estas situações de exclusão e marginalização. Estas são as situações mais arriscadas e que precisam de coragem e uma grande dose de oração. Além disso, é necessário que os Superiores apoiem e encorajem as pessoas dedicadas a esta obra”. Sempre há o risco, lembrou o papa, de se deixar levar pelo entusiasmo; isso pode resultar no envio de religiosos que tenham boa vontade, mas que não estejam preparados para as situações que encontrarão nas fronteiras dos marginalizados às quais forem enviados. Não devemos tomar decisões quanto aos marginalizados sem estarmos certos do discernimento adequado e do apoio.

Junto deste desafio dos marginalizados, o papa referiu-se a dois outros importantes desafios sempre presentes: um cultural e outro que tem a ver com a educação em escolas e universidades. A vida consagrada pode oferecer um grande serviço. Ele lembrou: “Quando os padres da Civiltà Cattolica vieram me visitar, falei com eles sobre as fronteiras do pensamento, pensamento que é único e fraco. Recomendei-lhes estas fronteiras. Assim como o reitor maior dos salesianos sabe, tudo para eles começou a partir de um sonho de educação de fronteira, o sonho de Dom Bosco que levou os salesianos às periferias geográficas da Patagônia. Poderíamos dar tantos outros exemplos”.

Para o papa, os pilares da educação são: “transmitir conhecimento, transmitir modos de fazer as coisas, transmitir valores. Através destes transmite-se a fé. O educador, ou educadora, deve estar à altura das pessoas que educa; ele ou ela precisa se interrogar sobre a forma como anunciar Jesus Cristo a uma geração em constante mudança”. Ele, pois, insiste: “A educação, hoje, é a missão central, central, central!” Lembrou algumas de suas experiências em Buenos Aires relativas à preparação necessária para acolher as crianças num contexto educacional, meninos e meninas, jovens que vivem situações complexas, especialmente em família: “Lembro do caso de uma menininha muito triste que, ao final, confiou à sua professora a razão de seu estado de ânimo: ‘a namorada de minha mãe não gosta de mim.’ A porcentagem de crianças estudando que têm pais separados é muita alta. A situação em que vivemos no momento nos dá novos desafios que, às vezes, são difíceis de compreendermos. Como podemos proclamar Cristo a estes meninos e meninas? Como podemos proclamar Cristo a uma geração que está em constante mudança? É necessário estarmos atento a não ministrar vacinas contra a fé que possuem”.

***

Ao final de três horas, por volta das 12h30min, o papa disse lamentar ter que dar fim à conversa: “Vamos deixar algumas perguntas para uma próxima vez”, disse sorrindo. Confessou que o dentista estava lhe esperando. Antes de se despedir dos Superiores Gerais, ele tem um anúncio a fazer: 2015 será um ano dedicado à vida consagrada; estas palavras foram recebidas com uma longa salva de palmas. O pontífice olha sorridente para o prefeito e para o secretário da Congregação para os Religiosos e Institutos seculares, dizendo: “É culpa é deles; é uma das ideias deles: é perigoso quando estes dois se juntam”, provocando risadas entre todos da Assembleia.

Ao deixar a sala, afirmou: “Obrigado, obrigado pelo ato de fé que tiveram neste encontro. Obrigado pelo que vocês fazem, pelo espírito de fé e pela busca do serviço. Obrigado pelo seu testemunho, pelos mártires que vocês continuam a dar à Igreja, bem como pelas humilhações às quais têm que passar: é o mundo da Cruz. Agradeço-os do fundo de meu coração”.

Fonte: IHU