Os desafios da sinodalidade para a Vida Religiosa hoje

*Conteúdo utilizado na live sobre Sinodalidade 

  1. Sinodalidade em Francisco

A sinodalidade é de profunda atualidade, adquirindo especial importância a partir do Concílio Vaticano II. No Pontificado do Papa Francisco existe a consciência clara e abrangente da necessidade do caminho sinodal, para dinamizar e reformar as estruturas eclesiais, apesar dos obstáculos e resistências que se encontram dentro da instituição. Francisco expressa de muitas maneiras o valor dos espaços de participação e escuta eclesial. O maior desafio no processo sinodal é a conjuntura marcada pela oposição de setores eclesiásticos, além da crise ética em estruturas governamentais, manifestando a necessidade de uma reforma eclesial.

Na homilia da Solenidade de São Pedro e São Paulo, em 2013, primeiro ano do seu pontificado, afirmou: “devemos caminhar pela estrada da sinodalidade”. Nos nove anos do pontificado de Francisco realizou vários sínodos: sobre a Família; sobre a juventude em; sobre a Amazônia; atualmente, se faz a consulta para o Sínodo sobre a Sinodalidade com o tema: “Por uma Igreja Sinodal, comunhão, participação e missão”. O processo tem três fases: diocesana, continental e universal. Este caminho é feito por consultas e discernimentos, tendo como ponto alto o Sínodo em Roma, em outubro de 2023.

A sinodalidade é o caminho no Magistério do Papa Francisco, sugerido sobretudo, no discurso da comemoração do 50º aniversário da instituição dos Sínodo dos Bispos, em 17 de outubro de 2015, afirmando que “o caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. Francisco apresentou sua marca num caminho sinodal que vem se desenvolvendo através da colegialidade. Para o Papa “Igreja e Sínodo são sinônimos”, porque “a Igreja não é outra coisa que o caminhar juntos”, palavras do discurso pelo 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos por Paulo VI. Em outras palavras, para o Papa Francisco na perspectiva eclesiológica do Concílio Vaticano II: Igreja sinodal é como uma “pirâmide invertida”, oferecendo nela um quadro interpretativo mais adequado para compreender o ministério hierárquico.

Assim sendo, a Igreja vem crescendo no processo da prática sinodal, assumindo um jeito cada vez mais participativo e missionário, enquanto mais vive e pratica um estilo sinodal de comunhão. Portanto, a Igreja não é apenas sinodal, mas também é missionária, porém só é missionária se for sinodal e só é sinodal se for missionária. Uma conversão missionária não é possível sem uma conversão sinodal, o que implica a escuta que tem a coragem de pedir e dar perdão (Cf. GRECH). Deste modo, existe uma consciência clara e firme do Papa Francisco para a renovação das estruturas eclesiais, a partir da sinodalidade para dinamizar e descentralizar a Igreja, apesar dos obstáculos e as resistências que encontra no interior da instituição.

Francisco deseja vincular os sujeitos eclesiais das diversas categorias do Povo de Deus, nas etapas dos processos sinodais que se tem gerado nestes anos. Francisco tem expressado de várias formas o valor dos espaços de participação que criam unidade e valorizam a teologia e eclesiologia à escuta horizontal e fraterna. A Igreja não pode deixar de reconhecer a necessidade de se reformar, renovando suas formas e ser mais coerente com os princípios do Evangelho.

Para o Papa Francisco “uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta. É uma escuta recíproca em que cada um tem algo a aprender. É escutar a Deus, é também escutar com Ele o clamor do povo; e escuta o povo, a ponto de insuflar-lhe a vontade a que Deus nos chama”. O exercício da escuta é essencial em uma eclesiologia sinodal, pois parte do reconhecimento da identidade de cada sujeito eclesial como leigos, sacerdotes, religiosos, bispos, a partir de relações horizontais baseadas na radicalidade da dignidade batismal e na participação no comum sacerdócio de todos os fiéis (LG 10).

De acordo com Francisco: “escutar não é o mesmo que ouvir”. Podemos acrescentar que também não equivale a consultar. A razão é que, em uma Igreja sinodal, a escuta se faz ao discernir juntos, em um processo de discernimento comunitário e não individual, porque se trata de “saber o que o Espírito ‘diz às Igrejas’ (Ap 2,7)” e encontrar formas de proceder de acordo com cada época. Seguindo o documento Ad Gentes, é um discernimento que deve levar a “uma acomodação mais profunda em toda o âmbito da vida cristã” (AG, 22).

Enfim, uma forma mais completa de ser Igreja implicará, ao mesmo tempo, a conversão de mentalidades e mudanças estruturais, porque “a sinodalidade dificilmente pode existir sem lugares ou procedimentos institucionais para sua implementação”. De fato, a Comissão Teológica Internacional nos lembra que “a dimensão sinodal da Igreja deve se expressar através da implementação e governança de processos de participação e discernimento capazes de manifestar o dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais” (CTI, 76).

 

  1. O desafio sinodal na Vida Religiosa Consagrada

A Vida Religiosa Consagrada tem o desafio de ser cada vez mais sinodal. É próprio caminhar juntos e viver em comunidade, são alma e essência do consagrado. O caminho sinodal é vivenciado, de maneira especial, através dos Capítulos Provinciais e Gerais como espaços de partilha, avaliação, planejamento e escuta. São espaços privilegiados para viver a sinodalidade, como caminho para a conversão de mentalidades, como para as reformas estruturais, sendo capazes de escutar e discernir os sinais dos tempos à luz do Evangelho.

A Sinodalidade designa um estilo peculiar que qualifica a vida e a missão da Vida Religiosa expressada na natureza de caminhar juntos. Este modo vivido e operado realiza-se através da escuta comunitária da Palavra, da celebração Eucarística, da comunhão fraterna, da corresponsabilidade e participação. O processo sinodal deve ser um processo que ajuda para renovar as estruturas, escutando o Espírito para saber a direção a seguir, tomando e discernindo as decisões e orientações para a missão.

O “Kairós da sinodalidade” nos oferece caminhos fecundos e reais para transitar com determinação o chamado à ressignificação e reconfiguração da Vida Religiosa: por um lado o Papa Francisco o expressa com clareza e convicção profética: “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. Por outro o Documento sobre “Sinodalidade na vida e missão da Igreja” expressam novas compreensões da Vida Religiosa, que valoriza o princípio da co-essencial entre os dons hierárquicos e os dons carismáticos na Igreja sobre a base no ensinamento do Concílio Vaticano II. Isto implica também as comunidades de Vida Consagrada, os movimentos e as novas comunidades eclesiais (CTI, 74).

Um sinal de autêntica fidelidade criativa para cada uma de nossas instituições é abrir-se a profundidade e discernimento de nossos carismas nos novos contextos. O Espirito Santo que inspirou o carisma fundacional dos fundadores e fundadoras nos deve inspirar novos matizes e explicações não reveladas até este momento histórico e cultural.

O Concilio Vaticano II no documento da Lumem Gentium não esqueceu esta incansável parcela cooperadora ativa na e da Igreja, qual seja a Vida Religiosa Consagrada. “Os religiosos por seu estado dão brilhante e exímio testemunho de que não é possível transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças” (LG, 30). Nos anos pós-concílio, os institutos religiosos foram se adequando às mudanças contingentes e aos contextos históricos. Seguindo por esse caminho, muitas foram as escolhas corajosas feitas de maneira sinodal.

A Vida Religiosa Consagrada deve ter como exemplo ao próprio Cristo que “consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição” (LG, 22).  Pela profissão dos conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência, a Vida Religiosa Consagrada é um sinal que resplandece o jeito de viver um estilo de vida que corresponde a uma escolha vocacional. Diante do mundo o fundamental é dar testemunho de Deus no caminhar juntos. Um testemunho escatológico, que consiste em transcender as estruturas temporais, para trazer presente o próprio Deus: “…ora manifesta aqui já neste mundo a todos os fiéis a presença dos bens celestes, ora dá testemunho da nova e eterna vida conquistada pela redenção de Cristo, ora prenuncia a ressurreição futura e a glória do Reino celeste” (LG, 44).

 

  1. Três características sinodais que desafiam a Vida Religiosa
    • A capacidade de delegar

Quem lidera na VRC não pode insistir em fazer tudo sozinho, não pode centralizar toda a responsabilidade para sim. O bom líder não é o que faz tudo, mas o que sabe dividir encargos criando novas lideranças no processo de sinodalidade. Na delicada arte de caminhar junto, é importante que o líder saiba delegar.

O texto de Atos 6, 1-7 nos traz a experiência do exercício da sinodalidade na comunidade de Jerusalém diante do problema das viúvas. No começo, quando a comunidade de Jerusalém teve o “problema” de que estava crescendo muito rápido e os apóstolos não conseguiam atender às necessidades de todos; aconteceu então que as viúvas não estavam sendo bem cuidadas Pedro olha ao redor e diz: nós apóstolos somos poucos, não podemos fazer isso sozinhos. Portanto, vamos escolher algumas pessoas para nos ajudar em nossa tarefa. Assim nasceu o grupo dos sete, juntamente com o grupo dos Doze (os apóstolos propriamente ditos). Escolhi esta passagem porque simplesmente nos mostra uma característica muito importante se queremos caminhar juntos.

    • Reconhecer e destacar os valores dos outros

Como consagrados e consagradas devemos reconhecer os valores e as capacidades criativas dos membros da comunidade.

Em Atos 11, 19-26, após o apedrejamento de Estêvão, uma terrível perseguição surgiu e todos, exceto os apóstolos, foram forçados a deixar Jerusalém. Alguns desses refugiados seguiram pela costa até Antioquia Síria. É a terceira metrópole do Império Romano, depois de Roma e Alexandria; no livro de Atos desempenha um papel estratégico, pois se tornará a base das viagens missionárias de Paulo. No entanto, na sua origem apresenta uma anomalia: alguns dos que foram obrigados a deixar Jerusalém começaram a anunciar o Senhor Jesus não só aos judeus, mas também aos pagãos. Assim nasceu a primeira comunidade “mista”; o maior, como já foi dito.

Até agora, houve algumas tentativas tímidas de abrir a proclamação do Evangelho também aos gentios, isto é, aos não hebreus; mas eram apenas alguns; agora algo está acontecendo em grande escala, tanto que Barnabé é enviado de Jerusalém para verificar Barnabé: um campeão da sinodalidade! De fato, quando ele chega a Antioquia, antes de tudo, nada muda: ele reconhece a graça de Deus que age, se alegra com ela e exorta todos a permanecerem fiéis ao Senhor.

Bernabé é grande porque se faz pequeno: reconhece o bem feito pelos outros e se alegra com isso; atitude que ainda hoje é muito rara… E então, como Pedro em Jerusalém, ele percebe que não é capaz de dirigir sozinho tal comunidade e vai procurar Paulo; ele o leva para Antioquia e juntos iniciam seu ministério; mais tarde também o levará consigo na sua primeira grande viagem missionária. Este é Bernabé: uma pessoa capaz de reconhecer o valor dos outros e realçá-lo com alegria. Eu diria que este é um segundo elemento importante para podermos caminhar juntos.

    • Respeitar a diversidade

Muitas comunidades da VRC são inter-geracionais, interculturais e internacionais, a partir daí vem o desafio de saber trabalhar e respeitar a diversidade. Olhando para Atos 14, 5-35, este aspecto pode ser exemplificado a parir tirado de Thiago, irmão do Senhor; era um dos parentes de Jesus, que durante sua vida pública não teve muita empatia com o Mestre, mas que depois da ressurreição ajudou a formar a comunidade de Jerusalém.

Há um problema em Antioquia: alguns querem que todos os pagãos que se tornem cristãos sejam circuncidados e observem cada um dos mandamentos da Lei e da Tradição de Israel; Paulo e Barnabé se opõem fortemente. Diante da impossibilidade de resolver o problema, o que fazem? Eles pedem ajuda a Jerusalém, enviando uma delegação com representantes de todos lados. Isso por si só já é um grande passo na sinodalidade: pedir ajuda a uma comunidade mais “especializada”.

Em Jerusalém reúne-se toda a Igreja e em primeiro lugar são ouvidas as partes; desde o início da passagem fica claro que os dois grupos estão certos, mas mesmo os poucos que gostariam de impor a observância aos pagãos não são silenciados: todos recebem a palavra. E este é outro passo de não pouca importância, se quiserem caminhar juntos.

A certa altura, Thiago intervém e ouve a Palavra de Deus, porque não somos auto referenciais. E então ele toma uma decisão tática: a Palavra de Deus nos diz que não é necessário impor a observância também aos gentios, mas ainda lhes pedimos que observem quatro coisas simples, às quais os hebreus praticantes são especialmente sensíveis; Pedimos a todos que não comam a carne usada nos sacrifícios aos deuses, não realizem casamentos proibidos pela Lei de Moisés, não comam carne com sangue e não comam ou bebam o próprio sangue. Para caminharmos juntos, não basta reiterar o princípio, dizer o que é correto; é importante esperar, dar o passo que todos podem dar agora. Um dia, essas quatro cláusulas também cairão, mas, naquele momento, removê-las significaria dividir a comunidade.

Para caminhar juntos, não basta impor princípios ou normas é importante esperar e dar passos, mesmos que sejam letos, para que todos possam participar.

 

Pe. Rafael Lopez Villasenor (rafamx65@gmail.com)

Ir. Maria Helena Morra (mhmorra@gmail.com)