Elementos para uma análise de conjuntura eclesial

Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo

Cambia el clima con los años
Cambia el pastor su rebaño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño

(Mercedes Sosa)

 

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  1. Introdução: Uma Igreja em transformação em um mundo em transformação

Tomando em conta os nove anos de pontificado do Papa Francisco, a Igreja vem fazendo passos significativos no contexto de um mundo em que se aceleram os acontecimentos e as interrogações e exigem da Igreja o seu posicionamento. Nos últimos anos do pontificado anterior ocorria de forma alarmante duas questões, a revelação e os escândalos de abusos sexuais por parte de clérigos e religiosos, e o vazamento de escândalos financeiros no Vaticano. Em ambas graves questões houve reposicionamento claro que começa a dar fruto, ainda que a cura seja a longo prazo. Em outras questões também graves, como a precipitação de eventos climáticos, tensões políticas, drama migratório, desequilíbrios sociais crescentes, a Igreja tem sido mais ágil em tomar inclusive a dianteira nas medidas que lhe estão ao alcance. Pode-se, assim, afirmar, de modo geral, que num mundo em acelerada transformação, a Igreja tem também se movido mais para ir ao encontro dos problemas e seu enfrentamento.

Em meio estas profundas transformações, a Igreja vive várias experiências de tensionamento. Há várias intepretações de como lidar com este mundo em profundas mudanças. Há quem abrace símbolos antigos, que sinta uma grande saudade – até mesmo de experiências eclesiais – de um a dois séculos atrás. Há quem entenda que a grande tarefa da Igreja é reagir à diminuição de quadros e nesta visão a evangelização consistiria em trazer gente para a Igreja. Há quem olhe para as grandes questões da humanidade e pense uma Igreja samaritana e dialogal. Quem diante de todo este cenário pense que o caminho é continuar a fazer o que está fazendo. Dessa forma o espaço eclesial se vê tensionado com posturas diversas, por vezes antagônicas que configuram vários modos de ser Igreja, nesta terceira década do século XXI.

 

  1. Luzes que orientam o caminho da Igreja

O Papa Francisco: O grande protagonista deste tempo eclesial continua a ser o Papa Francisco. A condução de seu pontificado, coerente com o texto programático Evangelii Gaudium – incluídas suas palavras iniciais de aparição no dia da eleição e em sua homilia inaugural – vem desenvolvendo de forma clara e firme elementos do Concílio Vaticano II que estavam ou adormecidos ou ainda em gérmen: Igreja despojada, em saída, dialogal, evangelizadora, todos caminhando juntos, a serviço da paz e do cuidado da criação. Os textos de magistério dão densidade e solidificam passo a passo este caminho. O Papa se posicionou de forma clara, dialógica, compreensível, diante das grandes questões que hoje afetam a humanidade, e está sendo escutado e percebido como líder e mestre. O bispo de Roma se torna exemplo de uma Igreja sacramento do amor trinitário. Uma Igreja que, apesar de sua idade, é capaz de surpreender, exagerar no amor, primeirear. Uma Igreja que se torna escutável não por ser detentora da verdade, mas porque quer mais humildemente dialogar com os grandes dramas humanos da contemporaneidade.

Sinodalidade: positivamente a insistência do Papa nesta categoria está fazendo caminho. Desde a homilia sobre a estrutura sinodal da Igreja e a “hierarquia inversa” por ocasião da celebração dos cinquenta anos de existência do sínodo dos bispos, até o alargamento do sínodo para todo o Povo de Deus, no sínodo para a Amazônia, na Assembleia Eclesial Latino-americana, no processo sinodal da Igreja na Alemanha, e sobretudo agora no processo sinodal para a celebração do Sínodo “sobre a sinodalidade” que envolve todo o Povo de Deus. Assim, aparece hoje um tripé firme no caminho sinodal: a fundamentação no Povo de Deus, o modo sinodal de ser Povo de Deus, e o objetivo missionário da sinodalidade de todo o Povo de Deus. Resumindo: Povo de Deus, sinodalidade, missão. A evangelização, a missão, é o que vem tornando o Povo de Deus e seus processos sinodais uma Igreja em saída missionária, em diálogo com o mundo contemporâneo, colocando-se positivamente no espaço do pluralismo religioso, cultural, político. Negativamente, para ajudar nos processos acima, o Papa tem criticado o narcisismo da autorreferencialidade, o clericalismo, o mundanismo espiritual (e litúrgico), o pelagianismo pastoral, o gnosticismo doutrinário, e isso tem deixado uma porção de clérigos e seminaristas aborrecidos com o Papa.

A expressão sinodalidade tem sido utilizada em muitas atividades e discursos. Os sínodos têm se multiplicado em várias (arqui)dioceses. No entanto, isso não quer dizer que estejamos avançando na mesma velocidade em práticas sinodais. Convém lembrar que várias dioceses do Brasil onde a experiência das CEBs foi vigorosa, já se viveu sinodalmente há décadas atrás. A utilização do termo sinodalidade cresce, mas atrás de práticas sinodais diferentes, residem compreensões eclesiológicas diferentes. Algumas com tendência antagônica ao que Francisco nos tem proposto. E convém observar que uma real sinodalidade na Igreja exige mudanças no Direito Canônico, que continua basicamente monocrático e monárquico, deixando os elementos sinodais na boa vontade da hierarquia.

– Algumas nomeações para encargos significativos na Igreja e o processo em andamento da reforma da cúria romana, aclarando que os encargos curiais não se fundamentam no sacramento da Ordem, mas na nomeação canônica e na competência para servir que poderão acelerar a abertura e a agilidade das reformas e da sinodalidade, com maior laicidade a serviço da relação do bispo de Roma com os demais bispos e Conferências episcopais.

Os desafios no campo da sinodalidade também se tornam mais evidentes quando olhamos a situação da mulher dentro da igreja. Maioria de presença nas atividades, nas comunidades, nas iniciativas pastorais. Na Vida Religiosa Consagrada, no entanto, ainda distante dos espaços de decisão. A percepção da realidade e os discernimentos se tornam mais limitados sem a contribuição das mulheres.

 

  1. Sombras que batem ou emergem da Igreja

– Em um mundo em que há portas que se fecham, como constata a Fratelli tutti, há um lado da Igreja que se fecha. Enquanto o Papa Francisco insiste em uma segunda recepção do Concílio, têm se fortalecido na Igreja posições pré-conciliares ou mesmo posições tímidas ou acomodadas. Por um lado, a lentidão na reforma da cúria, onde há nomeações sobretudo episcopais que ainda seguem políticas e interferências que destoam do magistério de Francisco, e deixam os mais avisados perplexos. Por outro lado, magistérios diversos, com focos afastados do magistério pontifício atual, com acentos pré-conciliares, baseados firmemente em concessões anteriores, como, por exemplo, o Motu Próprio Summorum Pontíficum, mesmo depois do Traditionis Custodes sobre o rito romano, acabam formando magistérios paralelos e tacitamente em oposição às ênfases do magistério de Francisco. Os pregadores e doutrinadores que se colocam nas redes sociais como influencers, clérigos e leigos, agradam o ouvido popular com aspectos devocionais e catequese tradicional sem levar em grande conta a recuperação da fundamentação e espiritualidade bíblica, sem considerar os estudos científicos consolidados e seu serviço à Palavra de Deus. A impressão é de medo e de insegurança ou de ocultamento diante das questões de um mundo pluralista, e sob o pretexto de combater o relativismo, se agarram ao absolutismo do que não é absoluto, e apresentam soluções inadequadas às buscas de sentido e espiritualidade, hoje. Assim, apresentam rigidez, agressividade, acusações a inimigos, com juízos inadequados e injustos.

– Um sintoma desses desfoques, da insistência no clericalismo, é a situação extrema de índice crescente e preocupante de depressão e de suicídios de clérigos.  A saúde mental das lideranças indica que práticas e processos urgem ser revistos. A proposta de Francisco não só apresenta uma nova imagem do presbítero, mas ao retomar as intuições conciliares como Igreja Povo de Deus, luz dos povos e do papa como bispo de Roma, enfoca na identidade da própria Igreja elementos que traçam passos importantes para a cura.

– Algumas sombras emergem de dentro da Igreja, e outras “batem” na Igreja desde fora ou são compartilhadas com uma sociedade que, pelas mesmas razões de um mundo em crise climática e ambiental, crise de recursos, crises migratórias, crise sanitária, assume posições fortemente conservadoras, nacionalistas, fundamentalistas, ferindo os direitos humanos, culpabilizando minorias, e isso vem afetando o corpo da Igreja, trazendo as polarizações sociais, o ódio e o ressentimento para dentro da Igreja. A distinção e a colaboração entre religião e política não são mais claras, e o mais frequente nesta confusão é o uso da religião para sacralizar posições políticas perigosas e injustas. Em cada tempo a igreja se vê desafiada a dialogar com as grandes questões do momento. De certa forma a Igreja sempre reflete em seu meio as questões do momento histórico. Está sempre em dialogo e é também reflexo de um tempo. As maiores luzes e as mais intensas contradições do tempo presente estão fora, mas também dentro da comunidade eclesial.

– A pandemia e seus efeitos estão marcando a dificuldade de retorno à participação presencial na liturgia e nas demais atividades da Igreja. Parte importante de grupos e de organizações eclesiais que pararam durante a pandemia ainda não deram sinal de retomada. A liturgia por redes sociais e televisão, por um lado reforçou o clericalismo litúrgico midiático e por outro lado a passividade e a redução ao mínimo de parte importante dos fiéis. A espiritualidade por influencers na forma de autoajuda, e fiéis digitais na forma de seguidores ou amigos, tornou a prática religiosa mais difusa, rasa, individualista, pontual, dependente de algum influencer.

No entanto, a pandemia ajudou a sensibilizar e a refletir sobre a vulnerabilidade, a finitude, a necessidade de amparo e de elaboração de perdas no luto, convocou à necessidade de escuta e de acompanhamento pastoral. Nestes tempos difíceis, milhares de anônimos em vários lugares do país foram sinal fecundo do Evangelho. Com a aceleração de mudanças sociais já em curso, a pandemia se tornou para todos os evangelizadores um grande desafio, em especial um convite para que a Igreja seja em todos as situações sinal de esperança.

 

  1. Entre angústias e esperanças

As ameaças que rodeiam a humanidade inteira, como os quatro cavaleiros do Apocalipse 6 – a guerra, a peste, a fome e a morte (com o inferno) -, parecem se traduzir hoje em crise sanitária, crise econômica, crise política e crise definitiva, a morte, e isso traz um difuso sentimento de angústia diante de um futuro incerto e perigoso. A entrada da modernidade veio incentivando quatro focos de confiança em quatro sistemas: religião, política, ciência e tecnologia. Hoje, os quatro sistemas estão abalados, e no caso da religião, se reduz a uma vaga espiritualidade.

No entanto, há outros horizontes que dão esperança no âmbito da Igreja, resumidos na Fratelli Tutti como experiências de compaixão, solidariedade que soma energias com iniciativas da sociedade civil e com outras tradições religiosas. A Economia de Francisco, A Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, o Pacto Global pela Educação, são processos amplos que vão abrindo caminho. No Brasil, as Campanhas da Fraternidade – educação, combate à fome –, os processos das Comunidades Eclesiais de Base, sobretudo na metade amazônica do Brasil, com a vitalidade da Rede Eclesial Pan-amazônica (REPAM), a voz de alguns bispos e a recente carta da grande maioria dos bispos da CNBB em relação ao momento brasileiro, são sinais concretos de esperança e passos positivos no caminhar da Igreja.

 

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Frei Luiz Carlos Susin, OFM Cap

Irmão Joilson de Souza Toledo, FMS

 

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